quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O desafio da inclusão – Novas perspectivas sobre a síndrome indicam que a inclusão de crianças autistas na rede de ensino regular é essencial para o desenvolvimento de suas potencialidades


Por Diego Benine

A professora entra na sala de aula e cumprimenta seus novos pupilos. É o primeiro dia letivo e a criançada, cheia de energia, conversa e brinca para aliviar as expectativas. A única exceção é um garotinho sentado na primeira fileira: calado, permanece o tempo todo com os olhos fixos em um ponto indetectável pelos colegas de classe. Até que, durante a aula, ele repentinamente se levanta e começa a passear pelo recinto. Ao tentar levá-lo para a carteira onde ele estava sentado, a professora é surpreendida com gritos, arranhões e pontapés. Em seguida, o silêncio. O menino fecha-se novamente em seu universo particular.
Esse tipo de comportamento é comum em portadores de autismo e acaba escondendo suas habilidades criativas e intelectuais – as quais podem ser desenvolvidas com acompanhamento adequado e vivência escolar. Contudo, as reações aparentemente desconexas representam também uma das muitas dificuldades que os educadores, pais e familiares encontram para inserir o autista na sala de aula.
O livro Mundo singular – entenda o autismo (Editora Fontanar)* enumera outras características do transtorno que comprometem o aprendizado e exigem posturas diferenciadas dos professores: dificuldades para socializar com outras crianças; déficit de concentração e linguagem; movimentos repetitivos (o ato de balançar o corpo ou de bater palmas, por exemplo); hipersensibilidade aos estímulos sensoriais; interpretação literal do que é dito, entre outros.
Quando bem-sucedida, a inclusão escolar traz benefícios à criança e às pessoas que convivem com ela. “Essa é a melhor forma de estimular as capacidades do portador.

Mais informação, melhor inclusão

Além disso, as outras crianças da turma aprendem a lidar com as diferenças e tornam- se adultos com menos preconceitos”, explica César de Moraes, coordenador do Departamento de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). “Devemos lembrar também o que é definido na Constituição: todo cidadão tem direito à saúde e educação. Partindo dessa premissa, o autista é um cidadão e o processo educacional é o mesmo”, completa Fábio Oliveira, da Associação Brasileira de Assistência e Desenvolvimento Social (Abads).
Para contribuir efetivamente com esse processo, é preciso entender o que, de fato, é o autismo. De acordo com Francisco Baptista Assumpção Júnior, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), trata-se de um transtorno de desenvolvimento de base biológica que compromete a cognição (habilidade ligada ao aprendizado, memória, percepção, entre outros atributos) e provoca alterações na sociabilidade, na linguagem e na capacidade imaginativa do indivíduo. Sua causa ainda é um mistério.
“Acredita-se que fatores genéticos estão envolvidos, embora aspectos ambientais – como quadros infecciosos ou traumáticos – também podem estar relacionados. Assim, não se deve pensar em uma causa única, mas sim em um conjunto delas, o qual ainda, infelizmente, não foi esclarecido.”

Níveis de intensidade

O autismo possui graus de intensidade. Segundo o médico, quadros mais severos normalmente são acompanhados de total isolamento e mutismo – o indivíduo não fala – ou de linguagem e movimentos estereotipados intensos. “É diferente dos casos mais leves. Nestes, as alterações no falar são sutis e envolvem, muitas vezes, uma linguagem pedante ou a criação de neologismos (inventar palavras)”, afirma Francisco.
O psiquiatra César enfatiza que essa condição não deve ser confundida com retardo mental. “De forma alguma podemos afirmar que são a mesma coisa. Apesar da maioria dos indivíduos autistas apresentarem o retardo associado, por volta de um quinto deles possui um nível intelectual normal”, afirma. Sabe-se também que algumas crianças que possuem o distúrbio apresentam habilidades extraordinárias, como memória fotográfica, aptidão para realizar cálculos matemáticos complexos ou afinidade com instrumentos musicais.
“Para a inclusão acontecer, as escolas precisam de profissionais que entendam do assunto e escolheram esse caminho” – Fábio Oliveira, educador

E as escolas, como vão?

Segundo Fábio, a inclusão só acontece quando a família mapeia detalhadamente todos esses sintomas e informa a instituição de ensino a respeito deles. Esta, por sua vez, deve contar com as metodologias adequadas para ajudar a criança a suprir suas deficiências.
Entretanto, o desafio não está somente nas características do autista ou no diálogo entre família e educador. A viabilização financeira dos métodos especializados de ensino também é um problema. “Por meio deles, é possível reduzir a incidência de comportamentos inadequados e ajudar o autista na organização do seu dia a dia, bem como na tarefa de se comunicar com os outros e de ingressar em qualquer espaço. No entanto, são metodologias caras de serem implantadas”, ressalta.
Outro empecilho no processo de inclusão é a carência de profissionais qualificados. Francisco explica que essa afirmação não se restringe somente aos educadores. “Ninguém está preparado. Durante o curso de medicina, não existe uma disciplina referente à Psiquiatria Infantil. Não existe residência específica sobre a área, que é explicada superficialmente (quando o é) durante a formação. Nos cursos de psicologia, ela é ministrada em disciplinas como Psicologia e Deficiência ou Psicologia do Excepcional, as quais, muitas vezes, são optativas e com a duração de um semestre. Dessa forma, aqueles que se interessam vão ter de estudar e aprender por conta própria.”

Caminho possível

Este é o lema de Fábio quando o assunto é a inclusão escolar de crianças autistas nos próximos anos. Tal otimismo é fruto da última conquista daqueles que lutam pela causa: em dezembro do ano passado, foi sancionada a lei que classifica o autista como deficiente. Ela não apenas garante proteção aos direitos do portador, como também torna sujeito à punição gestores escolares que se recusarem a matricular indivíduos com suspeita ou diagnóstico de autismo.
Para o pedagogo, isso representa mais do que um conjunto de benefícios legais: “Daqui cinco anos, mais ou menos, o Brasil saberá muito mais sobre o assunto. Será algo normatizado e bastante conhecido. Todas as escolas já terão as metodologias, o número de profissionais especializados crescerá e o portador será incluso, deixando de ser um mero ouvinte para tornar-se participante.”

O que esperar de uma consulta

O autismo é identificado por meio de uma consulta com um neuropediatra ou especialista em psiquiatria infantil. A partir da observação dos comportamentos da criança e do histórico familiar, o especialista já pode chegar ao diagnóstico antes que a criança complete três anos de idade. Não existem exames laboratoriais que possam confirmar o quadro – de acordo com Francisco, os que existem servem apenas para verificar fatores associados que permitam supor as causas do problema. No tocante ao tratamento, não existe um método padrão: cada paciente recebe acompanhamento multidisciplinar conforme suas deficiências. Em alguns casos, medicamentos são utilizados para controlar comportamentos de agressividade, alterações no sono e outros sintomas que atrapalham o processo de socialização.