Olá amigos, hoje encontrei um artigo longo e muito interessante, abordando o Autismo e a Síndrome de Asperger, numa visão geral, espero que gostem.
Abraços.
RESUMO
Autismo
e síndrome de Asperger são entidades diagnósticas em uma família de
transtornos de neurodesenvolvimento nos quais ocorre uma ruptura nos
processos fundamentais de socialização, comunicação e aprendizado.
Esses transtornos são coletivamente conhecidos como transtornos
invasivos de desenvolvimento. Esse grupo de condições está entre os
transtornos de desenvolvimento mais comuns, afetando aproximadamente 1
em cada 200 indivíduos. Eles estão também entre os com maior carga
genética entre os transtornos de desenvolvimento, com riscos de
recorrência entre familiares da ordem de 2 a 15% se for adotada uma
definição mais ampla de critério diagnóstico. Seu início precoce,
perfil sintomático e cronicidade envolvem mecanismos biológicos
fundamentais relacionados à adaptação social. Avanços em sua
compreensão estão conduzindo a uma nova perspectiva da neurociência
ao estudar os processos típicos de socialização e das interrupções
específicas deles advindas. Esses processos podem levar à emergência
de fenótipos altamente heterogêneos associados ao autismo, o
paradigmático transtorno invasivo de desenvolvimento e suas
variantes. Esta revisão foca o histórico, a nosologia e as
características clínicas e associadas aos dois transtornos invasivos
de desenvolvimento mais conhecidos – o autismo e a síndrome de
Asperger.
Descritores:
Autismo/terapia; Síndrome de Asperger/terapia;
Psicofarmacologia/efeito de drogas; Desenvolvimento infantil/efeito
de drogas; Gerenciamento da doença
Introdução
O
autismo e a síndrome de Asperger são os mais conhecidos entre os
transtornos invasivos do desenvolvimento (TID), uma família de
condições marcada pelo início precoce de atrasos e desvios no
desenvolvimento das habilidades sociais, comunicativas e demais
habilidades. Na quarta edição revisada do Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR), a categoria TID inclui
condições que estão invariavelmente associadas ao retardo mental
(síndrome de Rett e transtorno desintegrativo da infância), condições
que podem ou não estar associados ao retardo mental (autismo e TID
sem outra especificação ou TID-SOE) e uma condição que é tipicamente
associada à inteligência normal (síndrome de Asperger). Os TIDs estão
entre os transtornos de desenvolvimento mais comuns. Referem-se a
uma família de condições caracterizadas por uma grande variabilidade
de apresentações clínicas. Podem variar tanto em relação ao perfil da
sintomatologia quanto ao grau de acometimento, mas são agrupados por
apresentarem em comum uma interrupção precoce dos processos de
sociabilização. São, por natureza, transtornos do
neurodesenvolvimento que acometem mecanismos cerebrais de
sociabilidade básicos e precoces. Consequentemente, ocorre uma
interrupção dos processos normais de desenvolvimento social,
cognitivo e da comunicação. A consciência de que as manifestações
comportamentais são heterogêneas e de que há diferentes graus de
acometimento, e provavelmente múltiplos fatores etiológicos, deram
origem ao termo transtornos do espectro do autismo que, como o termo
TID, refere-se a várias condições distintas (autismo, síndrome de
Asperger e TID-SOE), mas que, ao contrário do termo TID, refere-se a
uma possível natureza dimensional que interconecta diversas condições
mais do que a fronteiras claramente definidas em torno de rótulos
diagnósticos. Este conceito de natureza dimensional apóia-se no fato
de que o autismo e transtornos relacionados são os transtornos do
desenvolvimento mais fortemente associados a fatores genéticos, e no
fato de que podem ser encontradas vulnerabilidade e rigidez social em
familiares desses pacientes, mesmo que esses familiares não
preencham critérios para um diagnóstico clínico. Refere-se, muitas
vezes, a esses familiares como portadores do "fenótipo mais amplo de
autismo".
Esta
revisão foca o paradigma dos TID (o autismo), bem como uma variante
próxima (a síndrome de Asperger). Enquanto a validade do diagnóstico
de autismo é inquestionável, o status de validade da síndrome de
Asperger (SA) ainda é controverso, mesmo 12 anos após sua
formalização no DSM-IV. A controvérsia é relacionada principalmente
ao fato deste diagnóstico ser confundido com o de autismo não
acompanhado de retardo mental, ou autismo com "alto grau de
funcionamento" (AAGF). Nós iremos enfatizar a descrição de casos
prototípicos dessas condições. No entanto, as discussões científicas
atuais nessa área tendem a focar sua atenção nos potenciais
mediadores da expressão clínica da síndrome (i.e. fatores preditores
de diferentes apresentações fenotípicas) e não nas questões do
diagnóstico diferencial (i.e. na questão se o AAGF e SA são a mesma
entidade diagnóstica ou não). Uma boa dose de confusão ainda cerca o
uso do termo síndrome de Asperger ou transtorno de Asperger, sendo
que não há quase nenhum consenso entre a comunidade de pesquisadores
clínicos. A ênfase desta revisão não está nas pesquisas
voltadas a uma ou outra forma específica de separar SA e AAGF. Ao
contrário, enfatiza as necessidades e os desafios típicos enfrentados
pelos indivíduos com essas condições, independentemente do rótulo
específico a eles atribuído.
Autismo
O autismo, também conhecido como transtorno autistico, autismo da infância, autismo infantil e autismo infantil precoce,
é o TID mais conhecido. Nessa condição, existe um marcado e
permanente prejuízo na interação social, alterações da comunicação e
padrões limitados ou estereotipados de comportamentos e interesses.
As anormalidades no funcionamento em cada uma dessas áreas devem
estar presentes em torno dos três anos de idade. Aproximadamente 60 a
70% dos indivíduos com autismo funcionam na faixa do retardo mental,
ainda que esse percentual esteja encolhendo em estudos mais
recentes. Essa mudança provavelmente reflete uma maior percepção
sobre as manifestações do autismo com alto grau de funcionamento, o
que, por sua vez, parece conduzir a que um maior número de indivíduos
seja diagnosticado com essa condição.
1. Histórico e nosologia
Em 1943, Leo Kanner descreveu, pela primeira vez, 11 casos do que denominou distúrbios autísticos do contato afetivo.
Nesses 11 primeiros casos, havia uma "incapacidade de relacionar-se"
de formas usuais com as pessoas desde o início da vida. Kanner
também observou respostas incomuns ao ambiente, que incluíam
maneirismos motores estereotipados, resistência à mudança ou
insistência na monotonia, bem como aspectos não-usuais das habilidades
de comunicação da criança, tais como a inversão dos pronomes e a
tendência ao eco na linguagem (ecolalia). Kanner foi cuidadoso ao
fornecer um contexto de desenvolvimento para suas observações. Ele
enfatizou a predominância dos déficits de relacionamento social,
assim como dos comportamentos incomuns na definição da condição.
Durante os anos 50 e 60 do século passado, houve muita confusão sobre
a natureza do autismo e sua etiologia, e a crença mais comum era a
de que o autismo era causado por pais não emocionalmente responsivos a
seus filhos (a hipótese da "mãe geladeira"). Na maior parte do
mundo, tais noções foram abandonadas, ainda que possam ser
encontradas em partes da Europa e da América Latina. No início dos
anos 60, um crescente corpo de evidências começou a acumular-se,
sugerindo que o autismo era um transtorno cerebral presente desde a
infância e encontrado em todos os países e grupos socioeconômicos e
étnico-raciais investigados. Um marco na classificação desse
transtorno ocorreu em 1978, quando Michael Rutter propôs uma
definição do autismo com base em quatro critérios:
1) atraso e desvio
sociais não só como função de retardo mental;
2) problemas de
comunicação, novamente, não só em função de retardo mental associado;
3) comportamentos incomuns, tais como movimentos estereotipados e
maneirismos; e
4) início antes dos 30 meses de idade.
A
definição de Rutter e o crescente corpo de trabalhos sobre o autismo
influenciaram a definição desta condição no DSM-III, em 1980, quando
o autismo pela primeira vez foi reconhecido e colocado em uma nova
classe de transtornos, a saber: os transtornos invasivos do
desenvolvimento (TIDs). O termo TID foi escolhido para refletir o
fato de que múltiplas áreas de funcionamento são afetadas no autismo e
nas condições a ele relacionadas. Na época do DSM-III-R, o termo TID
ganhou raízes, levando à sua adoção também na décima revisão da
Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde (CID-10). Para o DSM-IV, os novos critérios
potenciais para o autismo, bem como as várias condições candidatas a
serem incluídas na categoria TID, foram avaliados em um estudo
internacional, multicêntrico, que incluiu mais de 1.000 casos avaliados
por mais de 100 avaliadores clínicos. Os sistemas de
classificação do DSM-IV e da CID-10 foram tornados equivalentes para
evitar uma possível confusão entre pesquisadores clínicos que
trabalham em diferentes partes do mundo guiados por um ou por outro
sistema nosológico. A definição dos critérios foi decidida com base
em dados empíricos revelados em trabalho de campo. A confiabilidade
entre os avaliadores foi medida para o autismo e condições
relacionadas, indicando, em geral, um acordo de bom a ótimo,
principalmente entre os clínicos experientes. O DSM-IV-TR vem
acompanhado de textos atualizados sobre autismo, síndrome de Asperger
e outros TIDs, mas os critérios diagnósticos permanecem os mesmos
que os do DSM-IV.
2. Epidemiologia
O
primeiro estudo epidemiológico sobre o autismo foi realizado por
Victor Lotter, em 1966. Nesse estudo, ele relatou um índice de
prevalência de 4,5 em 10.000 crianças em toda a população de crianças
de 8 a 10 anos de Middlesex, um condado ao noroeste de Londres.
Desde então, mais de 20 estudos epidemiológicos foram relatados na
literatura e milhões de crianças foram pesquisadas pelo mundo todo.
Os índices de prevalência resultantes, particularmente nos estudos
mais recentes, apontam para um índice conservador de um indivíduo com
autismo (prototípico) em cada 1.000 nascimentos; cerca de mais quatro
indivíduos com transtorno do espectro do autismo (e.g., síndrome de
Asperger, TID-SOE) a cada 1.000 nascimentos; e índices muito menores
para a síndrome de Rett e menores ainda para o transtorno
desintegrativo infantil. As possíveis razões para o grande aumento na
prevalência estimada do autismo e das condições relacionadas são: 1)
a adoção de definições mais amplas de autismo (como resultado do
reconhecimento do autismo como um espectro de condições); 2) maior
conscientização entre os clínicos e na comunidade mais ampla sobre as
diferentes manifestações de autismo (e.g., graças à cobertura mais
freqüente da mídia); 3) melhor detecção de casos sem retardo mental
(e.g., maior conscientização sobre o AAGF e a SA); 4) o incentivo
para que se determine um diagnóstico devido a elegibilidade para os
serviços proporcionada por esse diagnóstico (e.g., nos EUA, como
resultado das alterações na lei sobre educação especial); 5) a
compreensão de que a identificação precoce (e a intervenção)
maximizam um desfecho positivo (estimulando assim o diagnóstico de
crianças jovens e encorajando a comunidade a não "perder" uma criança
com autismo, que de outra forma não poderia obter os serviços
necessários); e 6) a investigação com base populacional (que expandiu
amostras clínicas referidas por meio do sistemático "pente-fino" na
comunidade em geral à procura de crianças com autismo que de outra
forma poderiam não ser identificadas). É importante enfatizar que o
aumento nos índices de prevalência do autismo significa que mais
indivíduos são identificados como tendo esta ou outras condições
similares. Isso não significa que a incidência geral do autismo
esteja aumentando. A crença de aumento na incidência levou à idéia
que estava ocorrendo uma "epidemia" de autismo (i.e. que o número de
indivíduos com autismo estava crescendo em números alarmantes). Até
hoje, não existem evidências convincentes de que isso seja verdadeiro
e os riscos ambientais potenciais que hipoteticamente seriam
"ativadores" de tal epidemia (e.g., programas de vacinação) não
receberam nenhuma validação empírica em vários estudos em grande
escala realizados na Escandinávia, no Japão e nos EUA, entre outros.
Infelizmente, ainda é prevalente a crença entre algumas pessoas de
que a vacinação (e.g., a vacina tríplice viral ou
sarampo/caxumba/rubéola), ou os conservantes utilizados em programas
de imunização (e.g., timerosol), possam causar autismo. Essa crença
levou muitos pais a retirar seus filhos dos programas de imunização.
Como resultado disso, acumulam-se dados no Reino Unido e nos EUA
sugerindo a perigosa reaparição dessas doenças graves,
particularmente o sarampo, que pode levar ao retardo mental ou até à
morte.
Um achado
interessante envolvendo tanto as amostras clínicas quanto as
epidemiológicas foi o de que há uma maior incidência de autismo em
meninos do que em meninas, com proporções médias relatadas de cerca
de 3,5 a 4,0 meninos para cada menina. Essa proporção varia, no
entanto, em função do grau de funcionamento intelectual. Alguns
estudos relataram proporções de até 6,0 ou mais homens para cada
mulher, em indivíduos com autismo sem retardo mental, ao passo que as
proporções entre os que tinham retardo mental de moderado a grave
eram de 1,5 para 1. Ainda não está claro porque as mulheres têm uma
menor representação na faixa sem retardo mental. Uma possibilidade é
de que os homens possuam um limiar mais baixo para disfunção cerebral
do que as mulheres, ou, ao contrário, de que um prejuízo cerebral
mais grave poderia ser necessário para causar autismo em uma menina.
De acordo com essa hipótese, quando uma pessoa com autismo for uma
menina, ela teria maior probabilidade de apresentar prejuízo
cognitivo grave. Várias outras hipóteses foram propostas, incluindo a
possibilidade de que o autismo seja uma condição genética ligada ao
cromossomo X (dessa forma, tornando os homens mais vulneráveis), mas
atualmente os dados ainda são limitados para possibilitar quaisquer
conclusões.
3. Diagnóstico e características clínicas
Um
diagnóstico de transtorno autístico requer pelo menos seis critérios
comportamentais, um de cada um dos três agrupamentos de distúrbios
na interação social, comunicação e padrões restritos de comportamento
e interesses. Há quatro critérios de definição no grupo
"Prejuízo qualitativo nas interações sociais", incluindo prejuízo
marcado no uso de formas não-verbais de comunicação e interação
social; não desenvolvimento de relacionamentos com colegas; ausência
de comportamentos que indiquem compartilhamento de experiências e de
comunicação (e.g., habilidades de "atenção conjunta" - mostrando,
trazendo ou apontando objetos de interesse para outras pessoas); e falta
de reciprocidade social ou emocional. Quatro critérios definidores
de "Prejuízo qualitativo na comunicação" incluem atrasos no
desenvolvimento da linguagem verbal, não acompanhados por uma
tentativa de compensação por meio de modos alternativos de
comunicação, tais como gesticulação em indivíduos não-verbais;
prejuízo na capacidade de iniciar ou manter uma conversação com os
demais (em indivíduos que falam); uso estereotipado e repetitivo da
linguagem; e falta de brincadeiras de faz-de-conta ou de imitação
social (em maior grau do que seria esperado para o nível cognitivo
geral daquela criança). Quatro critérios no grupo "Padrões
restritivos repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses
e atividades" incluem preocupações abrangentes, intensas e rígidas
com padrões estereotipados e restritos de interesse; adesão
inflexível a rotinas ou rituais não-funcionais específicos;
maneirismos estereotipados e repetitivos (tais como abanar a mão ou o
dedo, balançar todo o corpo); e preocupação persistente com partes
de objetos (e.g., a textura de um brinquedo, as rodas de um carro em
miniatura). Como foi dito, o diagnóstico de um transtorno autístico
também requer desenvolvimento anormal em pelo menos um dos seguintes
aspectos: social, linguagem, comunicação ou brincadeiras
simbólicas/imaginativas, nos três primeiros anos de vida. E se a
criança preenche os critérios da síndrome de Rett ou de transtorno
desintegrativo infantil, esses transtornos têm precedência sobre o
autismo.
Há uma
variação notável na expressão de sintomas no autismo. As crianças com
funcionamento mais baixo são caracteristicamente mudas por completo
ou em grande parte, isoladas da interação social e com realização de
poucas incursões sociais. No próximo nível, as crianças podem
aceitar a interação social passivamente, mas não a procuram. Nesse
nível, pode-se observar alguma linguagem espontânea. Entre as que
possuem grau mais alto de funcionamento e são um pouco mais velhas,
seu estilo de vida social é diferente, no sentido que elas podem
interessar-se pela interação social, mas não podem iniciá-la ou
mantê-la de forma típica. O estilo social de tais indivíduos foi
denominado "ativo, mas estranho", no sentido de que eles geralmente
têm dificuldade de regular a interação social após essa ter começado.
As características comportamentais do autismo se alteram durante o
curso do desenvolvimento. Há um considerável potencial para
diagnósticos equivocados, especialmente nos extremos dos níveis de
funcionamento intelectual. A avaliação da criança com autismo deve
incluir um histórico detalhado, avaliações de desenvolvimento,
psicológicas e de comunicação abrangentes e a gradação das
habilidades adaptativas (i.e. habilidades espontâneas e
consistentemente realizadas para atender às exigências da vida
diária). Um exame adicional pode ser necessário para excluir prejuízo
auditivo, assim como déficits ou anormalidades motoras e sensoriais
evidentes ou sutis. O exame clínico deve excluir convulsões e
esclerose tuberosa (ver abaixo nas condições clínicas associadas),
e a pesquisa genética deve excluir a síndrome do cromossomo X
frágil.
1) Idade de início
O
início do autismo é sempre antes dos três anos de idade. Os pais
normalmente começam a se preocupar entre os 12 e os 18 meses, na
medida em que a linguagem não se desenvolve. Ainda que os pais possam
estar preocupados pelo fato de que a criança não escuta (devido à
falta de resposta às abordagens verbais), normalmente eles podem
observar que a criança responde de forma dramática aos sons de
objetos inanimados (e.g., um aspirador de pó, doces sendo
desembrulhados); ocasionalmente, os pais relatam retrospectivamente que a
criança era "demasiadamente boa", tinha poucas exigências e tinha
pouco interesse na interação social. Isso contrasta claramente com as
crianças com desenvolvimento normal, para as quais a voz e a face
humanas e a interação social estão entre as características mais
interessantes e evidentes do mundo. Ocasionalmente, os pais relatam que
a criança parecia desenvolver alguma linguagem e, então, a fala
permaneceu no mesmo patamar ou perdeu-se; tal histórico é relatado em
cerca de 20 a 25% dos casos. Quase sempre os pais relatam
terem ficado preocupados ao redor de dois anos e inevitavelmente em
torno dos três anos. Com a maior conscientização sobre o autismo e
seus sinais precoces (e.g., falta de contato visual, de apontar,
dar ou demonstrar comportamentos ou alegria social compartilhadas),
um número crescente de pais tem se preocupado quando se aproxima o
primeiro ano de vida da criança. Claramente, esta sensibilidade aos
atrasos e desvios no desenvolvimento social é maior em famílias em
que um irmão mais velho já tenha sido diagnosticado com autismo.
Ocasionalmente, os pais de crianças autistas com alto grau de
funcionamento podem se preocupar menos no primeiro ou no segundo ano
de vida, especialmente se a fala e a linguagem estiverem surgindo,
mas mesmo nesses casos os pais ficam preocupados antes dos três anos
de vida, na medida em que os graves déficits na interação social se
tornam mais aparentes em outras situações além do contato próximo com
os pais (e.g., em lugares públicos, na interação com colegas da
mesma idade ou com familiares).
2) Prejuízos qualitativos na interação social
Crianças
com desenvolvimento normal possuem um marcado interesse na interação
social e no ambiente social a partir do nascimento. Mecanismos
básicos da socialização, tais como atenção seletiva para faces
sorridentes ou vozes agudas e brincadeiras, levam as crianças a
procurar os cuidadores. A coreografia social mutuamente reforçadora
entre a criança e o cuidador inicia o desenvolvimento das habilidades
sociais cognitivas, de comunicação e simbólicas. Em bebês e crianças
jovens com autismo, a face humana possui pouco interesse;
observam-se distúrbios no desenvolvimento da atenção conjunta, apego e
outros aspectos da interação social. Por exemplo, a criança pode não
se engajar nos jogos habituais de imitação da infância (e.g.,
esconde-esconde), pode gastar um tempo descomedido explorando o
ambiente inanimado quando estimulada pela fala incidental produzida
pelos demais em sua proximidade. As habilidades lúdicas, além da
exploração sensorial dos brinquedos, podem estar completamente
ausentes. Esses déficits são extremamente característicos e não se
devem somente ao atraso do desenvolvimento.
O
interesse social pode aumentar com o passar do tempo. Há, em geral,
uma progressão no desenvolvimento: indivíduos mais jovens e com maior
comprometimento podem ser distantes ou arredios à interação, ao
passo que indivíduos um pouco mais velhos ou mais avançados podem ter
mais disposição de aceitar passivamente a interação, mas não a
buscam ativamente. Entre pessoas com autismo, mais capazes
funcionalmente, existe com freqüência interesse social, mas elas têm
dificuldade em administrar as complexidades da interação social; isto
freqüentemente leva ao surgimento de um estilo social não-usual ou
excêntrico.
3) Prejuízo qualitativo na comunicação verbal e não-verbal e nas brincadeiras
De
20 a 30% dos indivíduos com autismo nunca falam. Esse percentual é
consideravelmente menor do que era há cerca de 10 a 15 anos, graças,
em grande parte, à intervenção precoce e intensiva. Retardos na
aquisição da linguagem são as reclamações mais freqüentes dos pais.
Os padrões usuais de aquisição da linguagem (e.g., brincar com os
sons e balbuciar) podem estar ausentes ou ser raros. Bebês e crianças
jovens com autismo podem guiar a mão dos pais para obter um objeto
desejado, sem fazer contato visual (i.e. como se ela estivesse
obtendo o objeto pela mão e não pela pessoa). Ao contrário da criança
com transtorno de desenvolvimento da linguagem, não há motivação
aparente em estabelecer comunicação ou tentar comunicar-se por meios
não-verbais.
Quando os
indivíduos com autismo chegam a falar, sua linguagem é notável de
várias formas. Eles podem repetir o que lhes é dito (ecolalia
imediata) ou o que escutam em seu ambiente, como a TV (ecolalia
tardia). A linguagem tende a ser menos flexível, de forma que, por
exemplo, não existe uma avaliação de que a mudança de perspectiva ou
com quem se fala necessite de uma mudança de pronome; isso leva à
inversão pronominal. A linguagem pode ser não-recíproca em sua
natureza, e.g., a criança produz uma linguagem sem intenção de
comunicação. Mesmo que a sintaxe e a morfologia da linguagem estejam
relativamente preservadas, o vocabulário e as habilidades semânticas
podem ter um desenvolvimento lento e aspectos dos usos sociais da
linguagem (pragmática) são particularmente difíceis para os
indivíduos com autismo. Portanto, o humor e o sarcasmo podem ser uma
fonte de confusão, na medida em que a pessoa com autismo pode não
conseguir apreciar a intenção de comunicação do falante, resultando
em uma interpretação completamente literal da declaração. Em geral, a
entonação de voz é apagada ou monótona e os demais aspectos
comunicativos da voz (e.g., ênfase, altura, volume, e ritmo ou
expressões) são idiossincráticos e pobremente modulados.
Os
déficits no brincar podem incluir a falha no desenvolvimento de
padrões usuais de desempenho de papéis, ou brincadeiras de
faz-de-conta, simbólicas ou imaginativas. A criança autística pode
explorar os aspectos não-funcionais dos brinquedos (e.g., gosto ou
cheiro) ou usar partes dos brinquedos para a auto-estimulação (girar
os pneus de um caminhão de brinquedo).
4) Repertório notavelmente restrito de atividades e interesses
Crianças
com autismo freqüentemente possuem dificuldade em tolerar alterações
e variações na rotina. Por exemplo, uma tentativa de alterar a
seqüência de alguma atividade pode deparar-se com terrível sofrimento
por parte da criança. Os pais podem relatar que a criança insiste em
que eles participem das atividades de formas muito específicas. As
alterações na rotina ou no ambiente podem evocar grande oposição ou
contrariedade. A criança pode desenvolver um interesse em uma
atividade repetitiva, e.g., colecionar cordões e utilizá-los para
auto-estimulação, memorizar números, repetir certas palavras ou
expressões. Em crianças mais jovens, as vinculações aos objetos,
quando ocorrem, diferem dos objetos transicionais habituais, no
sentido de que os objetos escolhidos tendem a ser rígidos e não fofos
e geralmente é a classe do objeto, mais do que o objeto específico,
que é importante, e.g., a criança pode insistir em carregar algum
tipo de revista com ela para todos os lugares. Movimentos
estereotipados podem incluir andar na ponta dos pés, estalar os
dedos, balançar o corpo e outros maneirismos; esses movimentos são
realizados como uma fonte de prazer ou forma de se auto-acalmar e
podem, às vezes, ser exacerbados por situações de estresse. A criança
pode preocupar-se com objetos que giram, e.g., ela pode gastar
longos períodos de tempo olhando um ventilador de teto girando.
5) Características associadas
Como
observamos anteriormente, 60 a 70% dos indivíduos com autismo
possuem retardo mental e cerca de metade deles enquadra-se na faixa
de retardo mental leve e os demais na faixa de retardo mental de
moderado a profundo. Está bem estabelecido que o retardo mental não é
simplesmente conseqüência de negativismo ou da falta de motivação.
O perfil típico nos testes psicológicos é marcado por déficits
significativos de raciocínio abstrato, formação de conceitos verbais e
habilidades de integração, e nas tarefas que requerem um certo grau
de raciocínio verbal e compreensão social. Portanto, nas
escalas do Wechsler, por exemplo, os pontos fracos são notados
freqüentemente nos subtestes de Similaridades e Compreensão. Por
outro lado, os pontos relativamente fortes são geralmente observados
nas áreas de aprendizado mecânico e habilidades de memória e solução
de problemas visuo-espaciais, particularmente se a tarefa puder ser
completada "passo a passo", i.e. sem a criança ter que inferir o
contexto ou a "Gestalt" da tarefa. Portanto, o desempenho nos
subtestes Desenho de Blocos e Lembrança de Números das escalas do
Wechsler usualmente correspondem aos melhores desempenhos obtidos. A
preferência típica por raciocínios repetitivos e seqüências, mais do
que por tarefas de raciocínio e integração, normalmente implicam que
os indivíduos com autismo exibem um estilo muito fragmentado de
aprendizado, não completando diferentes partes de uma tarefa,
comunicação ou situações em conjuntos coerentes (como se fossem
incapazes de ver "o bosque a partir das árvores"). Dada
a ubiqüidade dos déficits verbais no autismo, o desempenho nas
escalas de Wechsler geralmente é caracterizado pelo melhor desempenho
nos escores de execução do que nos escores verbais, particularmente
nos indivíduos que têm escores na faixa do retardo mental. Indivíduos
com autismo e maior nível de funcionamento podem não apresentar um
diferencial no desempenho verbal segundo o QI, ainda que continuem
apresentando uma preferência por tarefas repetitivas, memória verbal e
por testes de reconstrução visual das partes para o todo em
detrimento de tarefas de raciocínio conceitual e social. As funções
"executivas" estão em geral prejudicadas, resultando em dificuldade
de planejamento de manutenção de um objetivo em mente enquanto
executam os passos para fazê-lo, do aprendizado por meio de feedback e da inibição de respostas irrelevantes e ineficientes.
Um
dos mais fascinantes fenômenos cognitivos no autismo é a presença
das denominadas "ilhotas de habilidades especiais" ou splinter skills,
i.e. habilidades preservadas ou altamente desenvolvidas em certas
áreas que contrastam com os déficits gerais de funcionamento da
criança. Não é incomum, por exemplo, que as crianças com
autismo tenham grande facilidade de decifrar letras e números, às
vezes precocemente (hiperlexia), mesmo que a compreensão do que lêem
esteja muito prejudicada. Talvez 10% dos indivíduos com autismo
exibam uma forma de habilidades "savant" – i.e. desempenho
alto, às vezes prodigioso em uma habilidade específica na presença de
retardo mental leve ou moderado. Esse fascinante fenômeno
relaciona-se a um âmbito reduzido de capacidades – memorização de
listas ou de informações triviais, cálculos de calendários,
habilidades visuo-espaciais, tais como desenho ou habilidades musicais
envolvendo tonalidade musical perfeita ou tocar uma peça musical após
tê-la ouvido somente uma vez. É interessante que indivíduos autistas
representam uma maioria desproporcional entre todas as pessoas "savant".
Tanto
a hiper quanto a hipossensibilidade aos estímulos sensoriais são
típicos das crianças com autismo. As crianças com autismo podem ser
muito agudamente sensíveis a sons (hiperacusia), e.g., tapar os
ouvidos ao ouvir um cão latir ou o barulho de um aspirador de pó.
Outras podem parecer ausentes frente a ruídos fortes ou a pessoas que
as chamam, mas ficam fascinados pelo fraco tique-taque de um relógio
de pulso ou pelo som de um papel sendo amassado. Luzes brilhantes
podem causar estresse, ainda que algumas crianças sejam fascinadas
pela estimulação luminosa, e.g., mover um objeto para frente e para
trás em frente dos seus olhos. Pode haver extrema sensibilidade ao
toque (defensividade tátil), incluindo reações fortes a tecidos
específicos ou ao toque social/afetuoso, embora haja muitas crianças
que sejam insensíveis à dor e possam não chorar após um ferimento
grave. Muitas crianças são fascinadas por certos estímulos
sensoriais, tais como objetos que giram, ou partes de brinquedos que
podem girar, enquanto algumas têm prazer com sensações vestibulares,
como rodopiar, realizando esta ação sem, aparentemente, ficarem
tontas.
Distúrbios do
sono e alimentares podem ser muito esgotantes na vida familiar,
particularmente durante a infância. Crianças com autismo podem
apresentar padrões erráticos de sono com acordares freqüentes à noite
por longos períodos. Distúrbios alimentares podem envolver aversão a
certos alimentos, devido à textura, cor ou odor, ou insistência em
comer somente uma pequena seleção de alimentos e recusa de provar
alimentos novos. Em crianças com prejuízo cognitivo mais grave, a
pica (i.e. comer coisas não-comestíveis) pode colocar um conjunto de
questões de segurança, incluindo o risco à toxicidade por chumbo.
Crianças
com autismo com um grau de funcionamento menor podem morder as mãos
ou punhos, muitas vezes levando ao sangramento e a formações calosas.
O fato de golpear a cabeça, particularmente nas que possuem um
retardo mental mais grave ou profundo, pode tornar necessário o uso
de capacetes ou outros dispositivos protetores. As crianças podem
também cutucar excessivamente a pele, arrancar o cabelo, bater no peito
ou golpear-se. Existe uma percepção menor do perigo, o que, junto
com a impulsividade, pode levar a ferimentos. Acessos de ira são comuns,
particularmente em reação às exigências impostas (e.g., cumprir
uma tarefa), alterações na rotina ou eventos inesperados. A falta de
compreensão ou a incapacidade de comunicar-se, ou a frustração total,
podem, eventualmente, levar a explosões de agressividade. Ainda que
alguns indivíduos com um grau mais elevado de funcionamento – e.g.,
aqueles com síndrome de Asperger – tenham sido descritos como
particularmente vulneráveis a exibir comportamentos anti-sociais, é
de fato mais provável que esses indivíduos sejam vítimas de piadas ou
outras formas de agressão; mais comumente ainda, esses indivíduos
tendem a se dirigir à periferia dos ambientes sociais.
4. Curso e prognóstico
O
autismo é um comprometimento permanente e a maioria dos indivíduos
afetados por esta condição permanece incapaz de viver de forma
independente, e requer o apoio familiar ou da comunidade ou a
institucionalização. No entanto, a maioria das crianças com autismo
apresenta melhora nos relacionamentos sociais, na comunicação e nas
habilidades de autocuidado quando crescem. Pensa-se em vários fatores
como preditores do curso e do desfecho de longo prazo, particularmente a
presença de alguma linguagem de comunicação ao redor dos cinco ou
seis anos, nível intelectual não-verbal, gravidade da condição e a
resposta à intervenção educacional. Crianças mais jovens mais
freqüentemente apresentam uma falta "global" de relacionamentos
interpessoais, que costumava ser incluída em sistemas diagnósticos
mais antigos. Ainda que algumas evidências de responsividade
diferenciada aos pais possa ser observada quando a criança ingressa na
escola primária, os padrões de interação social permanecem bastante
desviados da normalidade. Apesar disso, os ganhos em obediência e
comunicação são conseguidos geralmente durante os anos em que ela
cursa a escola primária, especialmente se são feitas intervenções
estruturadas, individualizadas e intensivas. Durante a adolescência,
algumas crianças autistas podem apresentar deterioração
comportamental; numa minoria delas, o declínio nas habilidades de
linguagem e sociais pode ser associado ao início de um transtorno
convulsivo. Vários estilos de interação podem ser observados,
variando de arredio a passivo e a excêntrico (e.g., crianças que
realizam tentativas de iniciar o contato com os demais, mas que o
fazem de uma forma muito desajeitada ou rígida); esses estilos estão
relacionados ao nível de desenvolvimento. Sintomas depressivos e
ansiosos podem aparecer em adolescentes com grau mais elevado de
funcionamento, que se tornam dolorosamente conscientes de sua
incapacidade de estabelecer amizades, apesar de assim o desejarem, e
que começam a sofrer do efeito cumulativo de anos de contato frustrado
com os demais, e de serem alvo da gozação dos colegas.
Vários estudos sobre o desfecho no longo prazo
sugerem que aproximadamente dois terços das crianças autistas têm um
desfecho pobre (incapazes de viver independentemente) e que talvez
somente um terço é capaz de atingir algum grau de independência
pessoal e de auto-suficiência como adultos; entre estes, a maioria
pode ter um desfecho razoável (ganhos sociais, educacionais ou
vocacionais a despeito de dificuldades comportamentais e de outra
ordem), ao passo que uma minoria (cerca de um décimo de todos os
indivíduos com autismo) pode ter um bom desfecho (ter capacidade de
exercer atividade profissional com eficiência e ter vida
independente).
Síndrome de Asperger
A
síndrome de Asperger (SA) caracteriza-se por prejuízos na interação
social, bem como interesses e comportamentos limitados, como foi
visto no autismo, mas seu curso de desenvolvimento precoce está
marcado por uma falta de qualquer retardo clinicamente significativo
na linguagem falada ou na percepção da linguagem, no desenvolvimento
cognitivo, nas habilidades de autocuidado e na curiosidade sobre o
ambiente. Interesses circunscritos intensos que ocupam totalmente o
foco da atenção e tendência a falar em monólogo, assim como
incoordenação motora, são típicos da condição, mas não são
necessários para o diagnóstico.
1. Histórico e nosologia
Em
1944, Hans Asperger, um pediatra austríaco com interesse em educação
especial, descreveu quatro crianças que tinham dificuldade em se
integrar socialmente em grupos. Desconhecendo a
descrição de Kanner do autismo infantil precoce publicado só um ano
antes, Asperger denominou a condição por ele descrita como
"psicopatia autística", indicando um transtorno estável de
personalidade marcado pelo isolamento social. Apesar de ter as
habilidades intelectuais preservadas, as crianças apresentaram uma
notável pobreza na comunicação não-verbal, que envolvia tanto gestos
como tom afetivo de voz, empatia pobre e uma tendência a
intelectualizar as emoções, uma inclinação a ter uma fala prolixa,
em monólogo e às vezes incoerente, uma linguagem tendendo ao formalismo
(ele os denominou "pequenos professores"), interesses que ocupavam
totalmente o foco da atenção envolvendo tópicos não-usuais que
dominavam sua conversação, e incoordenação motora. Ao contrário dos
pacientes de Kanner, essas crianças não eram tão retraídas ou
alheias; elas também desenvolviam, às vezes precocemente, uma
linguagem altamente correta do ponto de vista gramatical e não
poderiam, de fato, ser diagnosticadas nos primeiros anos de vida.
Descartando a possibilidade de origem psicogênica, Asperger salientou
a natureza familiar da condição e, inclusive, levantou a hipótese de
que os traços de personalidade fossem de transmissão ligada ao sexo
masculino. O trabalho de Asperger, publicado originalmente em alemão,
tornou-se amplamente conhecido no mundo anglófono somente em 1981,
quando Lorna Wing publicou uma série de casos apresentando sintomas
similares. Sua codificação da síndrome, no entanto,
descaracterizou um pouco as diferenças entre as descrições de Kanner e
Asperger, pois incluiu um pequeno número de meninas e crianças com
retardo mental leve, bem como de algumas crianças que tinham apresentado
alguns atrasos de linguagem nos primeiros anos de vida. Desde então,
vários estudos tentaram validar a SA como distinta do autismo sem
retardo mental, ainda que a comparação dos achados esteja sendo
difícil devido à falta de consenso para os critérios diagnósticos
da condição.
A
SA não recebeu um reconhecimento oficial antes da publicação da
CID-10 e do DSM-IV, ainda que tenha sido relatada pela primeira vez
na literatura da Alemanha em 1944. O trabalho de Asperger era
conhecido essencialmente nos países germanófonos e, somente nos anos
1970, foram feitas as primeiras comparações com o trabalho de Kanner,
especialmente por pesquisadores holandeses, tais como Van Krevelen,
que tinham familiaridade com as literaturas em inglês e alemão. As
tentativas iniciais de comparar as duas condições foram difíceis
devido às grandes diferenças nos pacientes descritos – os pacientes
de Kanner eram mais jovens e tinham maior prejuízo cognitivo. Da
mesma forma, a conceitualização de Asperger foi influenciada pelos
relatos de esquizofrenia e de transtornos de personalidade, ao passo
que Kanner foi influenciado pelo trabalho de Arnold Gesell e sua
abordagem de desenvolvimento. Tentativas de codificar os escritos de
Asperger em uma definição categorial da condição foram feitas por
vários pesquisadores influentes na Europa e na América do Norte, mas
nenhuma definição consensual surgiu até o advento da CID-10. E dada a
reduzida validação empírica dos critérios da CID-10 e do DSM-IV, a
definição da condição provavelmente irá mudar à medida que novos e
mais rigorosos estudos surjam no futuro próximo.
2. Epidemiologia
Dada
a falta de definições diagnósticas até recentemente, não é
surpreendente que a prevalência da condição seja desconhecida, ainda
que tenha sido relatado um índice de prevalência de 2 a 4 em 10.000.
Há poucas dúvidas de que a condição seja mais prevalente entre
homens do que em mulheres, com um índice relatado de 9 para 1. Nos
últimos anos, tem havido uma proliferação de associações de apoio
familiar, organizadas em torno do conceito de SA, e há indicações de
que esse diagnóstico está sendo feito pelos clínicos de forma muito
mais freqüente do que há somente alguns poucos anos; há também
indicações de que a SA também esteja funcionando atualmente como um
diagnóstico residual dado a crianças com nível de inteligência normal
e com um grau de comprometimento de habilidades sociais que não
preenchem os critérios de autismo, superpondo-se, dessa forma, com o
termo TID-SOE do DSM-IV. Possivelmente, o uso mais comum do termo SA é
como um sinônimo ou uma substituição para autismo em indivíduos com
QIs normais ou superiores.
Esse padrão diluiu o conceito e reduziu sua utilidade clínica. A
validação empírica dos critérios diagnósticos específicos é
extremamente necessária, ainda que tenha que aguardar relatos de
estudos rigorosos que utilizem procedimentos diagnósticos-padrão, e
fatores que dêem validação realmente independente da definição
diagnóstica, tais como dados neuropsicológicos, neurobiológicos e
genéticos.
3. Diagnóstico e características clínicas
O
diagnóstico de SA requer a demonstração de prejuízos qualitativos na
interação social e padrões de interesses restritos, critérios que
são idênticos aos do autismo. Ao contrário do autismo, não há
critérios para o grupo dos sintomas de desenvolvimento da linguagem e
de comunicação e os critérios de início da doença diferem no sentido
de que não deve haver retardo na aquisição da linguagem e nas
habilidades cognitivas e de autocuidado. Aqueles sintomas resultam num
prejuízo significativo no funcionamento social e ocupacional.
Contrastando
um pouco com a representação social no autismo, os indivíduos com SA
encontram-se socialmente isolados, mas não são usualmente inibidos
na presença dos demais. Normalmente, eles abordam os demais, mas de
uma forma inapropriada e excêntrica. Por exemplo, podem estabelecer
com o interlocutor, geralmente um adulto, uma conversação em monólogo
caracterizada por uma linguagem prolixa, pedante, sobre um tópico
favorito e geralmente não-usual e bem delimitado. Podem expressar
interesse em fazer amizades e encontrar pessoas, mas seus desejos são
invariavelmente frustrados por suas abordagens desajeitadas e pela
insensibilidade em relação aos sentimentos e intenções das demais
pessoas e pelas formas de comunicação não-literais e implícitas que
elas emitem (e.g., sinais de tédio, pressa para deixar o ambiente e
necessidade de privacidade). Cronicamente frustrados pelos seus
repetidos fracassos de envolver outras pessoas e de estabelecer relações
de amizade, alguns indivíduos com SA desenvolvem sintomas de
transtorno de ansiedade ou de humor que podem requerer tratamento,
incluindo medicação. Eles também podem reagir de forma inapropriada
ou não compreender o valor do contexto da interação afetiva,
geralmente transmitindo um sentido de insensibilidade, formalidade ou
desconsideração pelas expressões emocionais das demais pessoas.
Podem ser capazes de descrever corretamente, de uma forma cognitiva e
freqüentemente formalista, as emoções, as intenções esperadas e as
convenções das demais pessoas; no entanto, são incapazes de atuar de
acordo com essas informações de uma forma intuitiva e espontânea,
perdendo, dessa forma, o ritmo da interação. Sua intuição pobre e
falta de adaptação espontânea são acompanhadas por um notável apego
às regras formais do comportamento e às rígidas convenções sociais.
Essa apresentação é responsável, em grande parte, pela impressão de
ingenuidade social e rigidez comportamental, que é tão forçosamente
transmitida por esses indivíduos.
Ainda
que significativas anormalidades na linguagem não sejam comuns em
indivíduos com SA, há pelo menos três aspectos nos padrões de
comunicação desses indivíduos que são de interesse clínico.
Primeiro, a linguagem pode ser marcada pela prosódia pobre, ainda
que a inflexão e a entonação possam não ser tão rígidas e monotônicas
como no autismo. Eles geralmente exibem um espectro restrito de
padrões de entonação que é utilizado com pouca relação no
funcionamento comunicativo da declaração (e.g., asserções de fato,
comentários bem-humorados). A velocidade da fala pode ser incomum
(e.g., fala muito rápida) ou pode haver falta de fluência (e.g., fala
entrecortada) e há, freqüentemente, modulação pobre do volume (e.g.,
a voz é muito alta, apesar da proximidade física do parceiro da
conversação). A última característica pode ser particularmente
observável no contexto de falta de ajustamento ao ambiente social em
questão (e.g., em uma biblioteca, em uma multidão barulhenta).
Segundo, a fala pode ser tangencial e circunstancial, transmitindo um
sentido de frouxidão de associações e incoerência. Ainda que em um
número muito pequeno de casos esse sintoma possa ser um indicador de
um possível transtorno de pensamento, a falta de contingência na fala
é um resultado do estilo de conversação em monólogo e egocêntrico
(e.g., monólogos incansáveis sobre nomes, códigos e atributos de
inúmeras estações de TV no país), incapacidade de fornecer a origem
dos comentários e de demarcar claramente as mudanças de tópico, e a
não-supressão da produção vocal que acompanha os pensamentos
introspectivos. Terceiro, o estilo da comunicação dos indivíduos com
SA caracteriza-se, geralmente, por notável verbosidade. A criança
ou adulto pode falar incessantemente sobre um assunto favorito,
geralmente sem qualquer relação com o fato de a pessoa que escuta
estar interessada, envolvida, ou tentar interpor um comentário ou
alterar o tema da conversação. Apesar de tais monólogos prolixos, o
indivíduo pode não chegar nunca a um ponto ou a uma conclusão. As
tentativas do interlocutor de elaborar sobre questões de conteúdo ou
de lógica ou de mudar a conversação para tópicos relacionados são
freqüentemente frustradas.
Os
indivíduos com SA normalmente acumulam uma grande quantidade de
informações factuais sobre um tópico, de uma forma muito intensa. O
tópico em questão pode alterar-se de tempos em tempos, mas em geral
domina o conteúdo do intercâmbio social. Freqüentemente, toda a
família pode estar imersa no assunto por longos períodos de tempo.
Esse comportamento é extravagante no sentido de que, na maior parte
das vezes, grandes quantidades de informações factuais são aprendidas
sobre tópicos muito circunscritos (e.g., cobras, nomes de estrelas,
guias de programação da TV, panelas de fritura comerciais,
informações sobre o tempo, informações pessoais sobre membros do
Congresso), sem uma genuína compreensão dos fenômenos mais amplos
envolvidos. Esse sintoma pode nem sempre ser facilmente reconhecido
na infância, já que fortes interesses, como dinossauros ou
personagens ficcionais da moda, são onipresentes. No entanto, tanto
em crianças mais jovens como em mais velhas, os interesses especiais
normalmente se tornam mais bizarros e com foco mais restrito.
Indivíduos
com SA podem ter um histórico de aquisição atrasada das habilidades
motoras, tais como andar de bicicleta, agarrar uma bola, abrir
garrafas e subir em brinquedos de parquinho ao ar livre. Com
freqüência, são visivelmente desajeitados e têm uma coordenação
pobre, e podem exibir padrões de andar arqueado ou aos saltos e uma
postura bizarra. Do ponto de vista neuropsicológico, existe, em
geral, um padrão relativamente elevado em habilidades auditivas e
verbais e aprendizado repetitivo, e déficits significativos nas
habilidades visuomotoras e visuoperceptuais e no aprendizado
conceptual. Muitas crianças exibem altos níveis de atividade na
infância precoce e, como mencionado, podem desenvolver ansiedade e
depressão na adolescência e no início da vida adulta.
4. Curso e prognóstico
Não
há ainda estudos sistemáticos de acompanhamento no longo prazo de
crianças com SA, parcialmente devido a problemas com a nosologia.
Muitas crianças são capazes de assistir a aulas em escola regular com
serviços de apoio adicional, ainda que sejam especialmente
vulneráveis a serem vistas como excêntricas e a serem alvo de
chacotas ou serem vitimizadas; outras requerem serviços de educação
especial, geralmente não devido a déficits acadêmicos, mas devido às
suas dificuldades sociais e comportamentais. A descrição inicial de
Asperger previu um desfecho positivo para muitos de seus pacientes
que, com freqüência, eram capazes de utilizar seus talentos especiais
para obter emprego e ter vidas auto-sustentadas. Sua observação de
traços similares em familiares, i.e. pais, pode também tê-lo tornado
mais otimista sobre o desfecho final. Ainda que seu relato tenha sido
pouco comprovado durante o período em que ele tinha visto 200
pacientes com a síndrome (25 anos após seu artigo original), Asperger
continuava a acreditar que um desfecho mais positivo era um critério
central para diferenciar os indivíduos com sua síndrome daqueles com
o autismo de Kanner. Ainda que alguns clínicos tenham apoiado
informalmente essa afirmação, particularmente com relação a conseguir
um bom emprego, independência e o estabelecimento de uma família,
não existe nenhum estudo disponível que tenha estudado
especificamente o desfecho no longo prazo de indivíduos com SA. O
prejuízo social (particularmente as excentricidades e a insensibilidade
social) é considerado permanente.
Conclusão
As
síndromes autísticas e a de Asperger são síndromes originadas de
alterações precoces e fundamentais no processo de socialização,
levando a uma cascata de impactos no desenvolvimento da atividade e
adaptação, da comunicação e imaginação sociais, entre outros
comprometimentos. Muitas áreas do funcionamento cognitivo estão
freqüentemente preservadas e, às vezes, os indivíduos com essas
condições exibem habilidades surpreendentes e até prodigiosas. O
início precoce, o perfil de sintomas e a cronicidade dessas condições
implicam que mecanismos biológicos sejam centrais na etiologia do
processo. Avanços na genética, neurobiologia e
neuroimagem (descritos em outros artigos deste suplemento) estão
ampliando conjuntamente nossa compreensão sobre a natureza dessas
condições e sobre a formação do cérebro social em indivíduos com
esses características. Junto com esta nova onda de estudos prospectivos sobre o autismo,
na qual irmãos sob risco de desenvolver a condição são acompanhados
desde o nascimento, uma nova perspectiva da neurociência social sobre
a patogênese e a psicobiologia dos fatores está surgindo. Este
esforço provavelmente irá elucidar os mistérios da etiologia e da
patogênese dessas condições. A transição do foco das pesquisas para
tratamentos mais eficazes, senão a prevenção, irá provavelmente
acontecer.
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Por Ami Klin Yale Child Study Center, Yale University School of Medicine, New Haven, Connecticut, USA
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